quinta-feira, 5 de novembro de 2009

São Paulo não me amou à primeira vista

São Paulo não me amou à primeira vista. A mecânica fria, do rosto de concreto da cidade, expressou o pulsar de um coração metálico. Os segredos que os apaixonados revelam se transformaram em ruído. Nada mais foram do que o som da britadeira perfurando a calçada, a desgraçar orelhas e desagarrar estrofes de amor.

Perdi a vontade de escrever naquele dia. Saltei de um andaime operário e despenquei no vazio da angústia infinita, de quem sempre espera chegar ao solo, sem nunca se estatelar no chão. Dei cara ao tapa do assoalho pesado que jamais aparalelepipedaria-me os ossos. Mas senti o frio na barriga e a dor do choque.

O ônibus não parou na esquina da Faria Lima com Juscelino, porém, estacionou toneladas de sapatos e cotidianos nos meus ombros. A ponto de me encaminhar um bilhete perfumado e único, como quem diz adeus pela última vez. E arremessa um tijolo na nossa cabeça, quando já demos as costas.

São Paulo não me amou à primeira vista. Trocou o amor que poderia ter dedicado por um céu de sorrisos nublados e sobrancelhas que nada dizem. Trocou a entrega total pelas gotas lisas e transparentes de uma chuva sem cheiro. Trocou todo o sentimento do mundo pelo mutismo de uma pedra. Friccionou na pele motocicletas a cruzar a cidade; com a buzina estúpida de quem avança um cruzamento e voa até derrubar a tua ou a minha nuca no meio-fio.

Há tanta gente ganhando dinheiro em São Paulo. Ou pedindo carinho. Há tanto rosto que não é possível identificar algum, bem como tantas pessoas por perto que não é possível se aproximar de alguém. Entre os prédios, a gente não sabe onde mora a felicidade. Entre os sonhos, a gente não sabe o que continuará ilusão ou se tornará realidade.

Pelas marginais engarrafam lágrimas e respingos de suor. Sobre a cabeça os aviões dos céus do Itaim, que vão para o Rio de Janeiro, Ceará, Salvador, Belo Horizonte. Os meus pais estão em Minas. Meus amigos ficaram em Belém. A avó que me criou está no interior do Sergipe. Tia Jurema viveu aqui até 1998, no entanto, depois voltou para Brasília. Só eu insisti na capital. A capital de São Paulo, não a do país. Mas bem que poderia ser. Mas bem que em alguns aspectos é.

Há gente querendo que eu seja. Eu tenho tantos sonhos de me tornar alguma coisa para a gente que eu conheço. Se é que já não me tornei. Muitas vezes, não temos ideia do que significamos para quem está ao redor. E, pior ainda, quando os outros não têm ideia do que significamos para eles. Podem fugir. Depois se arrepender, dar meia volta e nunca mais nos encontrar, em uma São Paulo de percursos longos e confusos – que sabe lá quando nos amará de vez.

(por Eduardo Shor)

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Produtividade

O texto de hoje é do engenheiro carioca Daniel Levitan, de 28 anos. Ele já morou cerca de um ano em Buenos Aires, na Argentina, a trabalho, e o mesmo motivo o traz a São Paulo, para uma temporada de um mês. Há algumas semanas na cidade, Daniel escreve:

A correria, o dia-a-dia, isso São Paulo não te ensina, ela te aguça.

Trabalhar em consultoria tem disso. Ela te faz conhecer pessoas diferentes, lugares diferentes. Se por um lado tira o convívio da família, por outro te dá o convívio do mundo.

Projeto dentro de um banco, especificamente na área tecnológica, ou a “fábrica” do banco comercial. As pessoas chegando pontualmente. Enormes filas para identificação na portaria mal dimensionada. Oportunidade para venda de projetos de melhoria de processos.

Produtividade. Tempo. Postura. Conduta. Vestimenta. Terno. Sentado em um banco baixo, feito de alguns pedaços de madeira que mostravam não se encaixar bem, um engraxate. Dentro de uma sala do moderno complexo comercial. Concentração, o ofício em primeiro plano.

Braços negros musculosos, cenho franzido, movimentos rápidos demonstrando a pressa de terminar o serviço no sapato em questão e já atacar o próximo na fila.

Completamente alheio ao que se passava na sala o engraxate se concentrava em seu ofício. Incerto e inseguro. Dependendo da boa vontade das pessoas que lhes deixasse ingressar no complexo comercial para exercer seu ofício.

O mundo moderno nos ensina e nos deprime. Mostra a perseverança, mas entristece pelo enorme poder simbólico.

No mundo da informação, onde a formação é talvez mais que a personalidade de uma pessoa, determinante para o emprego e boa remuneração. Possibilidade, portanto, de criar a família, um sujeito demonstrando o total despreparo exibe seu lado mais cruel.

A diferença social, marcada pela falta de instrução, pelo distanciamento provocado pela maneira como chegou ao Brasil, e sobretudo sua condição.

Cada conversa, cada imagem nos remete à frágil sociedade na qual estamos.

João conseguiu o dinheiro para comprar a comida dos próximos dois dias.

domingo, 11 de outubro de 2009

Domingo (parte final)

Alex não era bonito. Ao contrário, muitos diriam que era feio mesmo. Ela, no dia que o conheceu, também achou. Mas, hoje, brigava quando falavam algo do tipo a seu respeito. Sempre dizia:

- Ele é um dos caras mais bonitos que já conheci.

E realmente achava. Não metaforicamente apenas. Achava.

Conheciam-se há dez anos. Brigaram uma vez, quando tinham 16. Os dois, muito competitivos, tiveram uma discussão áspera por causa de um jogo de sua época, chamado “Imagem e Ação”. Ana tinha certeza de que não era permitido usar o alfabeto, nenhuma letra! Ele insistiu no contrário. Brigaram e ficaram várias e intermináveis horas sem se falar.

Depois voltaram. Falaram-se como se nada houvesse acontecido.

E esta foi a briga que tiveram.

Ana pensava em Alex como um irmão. Gostava dele de uma forma infinita, muito terna. Mas não era sexualmente atraída por ele. Ao contrário, houve um período em que Alex foi realmente apaixonado por Ana, nos idos dos anos 90. Este período passou. Passou de todo coração. E Alex via Ana como uma irmã.

- O que você tem feito de bom?
- Trabalho. Trabalho.
- É, eu também.
- Gosto do meu trabalho, só que às vezes sinto falta da arte.
- Eu estou bem. Gosto muito do que faço. Trabalho demais, às vezes me estresso, mas não consigo pensar na vida de outra forma, contou Alex.

E ficaram conversando por algumas horas, uma conversa de quem se vê sempre. Uma conversa que não indicava que há muitos meses eles nem se falavam, pelas distâncias da vida.

Quando Alex teve que ir embora para encontrar a menina, Ana estava feliz, apenas por ter encontrado o amigo. Sentia-se outra. Mais confiante, a Ana de antigamente.

Era engraçado. Ana tinha convicções muito fortes sobre a vida. Sabia muito sobre o certo e o errado, o bom e o mau, o querer e o não-querer. Aquele ano sozinha em São Paulo abalou suas certezas. E o contato com Alex fazia com elas voltassem, ao menos por algum tempo.

(por Nira Bessler)

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Domingo (parte II)

Quando, enfim, tomou um banho e se arrumou para sair, já eram mais de duas da tarde.

Foi à livraria FNAC da Paulista. Morava a uma quadra da avenida, na Campinas, do lado menos nobre, o centro. Havia lido em algum lugar que a FNAC não gostava de ser chamada de “livraria”, porque era mais do que isso. Não gostou. Pensava: o que pode ser “mais” do que uma livraria? Nunca deixou de ir, entretanto.

Comprou o jornal e sentou no café da livraria. Leu o jornal de ontem, com notícias de anteontem, como já dizia o poeta. Essas coisas rápidas dos tempos de hoje, às vezes a incomodavam. Principalmente aos domingos. Não navegava na internet, sequer ligava o computador nos fins de semana. Era uma regra que se impôs.

- Naninha!

Virou. Só seus amigos mais próximos e antigos a chamavam assim. Mal acreditou quando viu Alexandre. Amigo de colégio. Graaande Alex!, respondeu.

Que saudade! Que saudade! Era o afeto de que precisava. Alex sempre foi um de seus amigos mais inteligentes e afetuosos. Não daquele afeto superficial, sem compromisso. Mas de um amor real, que sempre estava presente quando um de seus queridos precisava.

Ao mesmo tempo, sabia ser sarcástico e irônico quando queria. Tinha um discurso cínico, que não combinava com seu jeito de ser. Quem o conhecia, sabia.

- Naninha, que saudade!
- Puxa, você veio para Sampa e nem me ligou...
- Vim a trabalho na sexta, ia voltar no mesmo dia, mas decidi ficar mais alguns.
- Entendi. Que bom te ver! O que você vai fazer hoje? Está sozinho?
- Vou encontrar uma menina mais tarde. Conheci num barzinho na sexta.
- Entendi. Legal! Senta aí. Vamos tomar café juntos.

Sentiu as ondas de afeto, a delicadeza do sentimento que dá sem pedir retorno, e sentiu-se como uma bateria quase vazia colocada em uma tomada. Feliz. (confira amanhã a última parte)

(por Nira Bessler)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Domingo

O texto de hoje é da jornalista carioca Nira Bessler, de 30 anos. Ela está desde fevereiro de 2004 em São Paulo. Veio para a cidade a trabalho e atua na área de relações com investidores de um banco. Confira:

Um depois do outro. Para baixo e para cima. Esticados e dobrados. Unhas brancas. Pés gelados. Olhando para eles, Ana pensava no que faria aquela tarde.

Acordara minutos antes ao som do alarme antibombas da Paulista. Nunca entendera direito para que um alarme antibombas em momentos de paz, em um país que nos tempos recentes não conheceu a guerra (à parte a urbana).

De qualquer forma, por motivos bem pessoais, gostava daquele alarme. Ele impedia que ela dormisse demais aos domingos. Meio-dia estava sempre de pé. Ou ao menos de olhos abertos.

Naquele domingo, 10 de abril de 2005, ela ainda não havia levantado da cama. Olhava para seus pés, pensando aonde os levaria naquela tarde.

Sempre precisava ao menos de uns 20 minutos para sair da cama. O momento de acordar era o pior de seu dia. Preguiça. Não era uma mulher diurna.

Contraditoriamente, odiava, sim a palavra é odiar, odiava fazer nada.

Levantou.

Apartamento de um quarto grande até, para os dias de hoje. Estava de bom tamanho para alguém sozinha.

Os pés gelados no chão, andava pela casa. Há um ano chegava a Sampa. Achou que seria uma reviravolta na sua vida. Não teve medo. Estava cansada no Rio, sentindo-se empacada.

Realmente, a reviravolta veio. Não foi exatamente como ela imaginava. Foi o fim de sua infância protegida. Não sabia que o tempo atual era bem diferente do tempo da casa dos seus pais.

Viveu em casa os amores fraterno e paterno. Conheceu a ética, o bem-estar, as brigas e revoltas também, é verdade. Mas tudo com muito respeito.

Criança que era, achava que conhecia o mundo, esnobava a ingenuidade e tinha certezas “absolutas”. Achava que a mentira era para poucos, vejam só. E o pior. Acreditava que era forte. Que se virava sozinha. Que sempre saberia o que fazer. Que o afeto era fácil.

Em Sampa, conheceu a solidão. E não estava sozinha. (continua amanhã)

domingo, 4 de outubro de 2009

Céu azul (continuação)

Um grupo de pássaros cruzou o seu inconsciente, piando cheiro matutino de lírios. Uma corrente de ar fresco acariciou-lhe a testa, em um sussurro de quem diz eu te amo como prova de amor sincero e único. Desse que todos sonham para si, sem sofrimento.

O homem ultrapassara a Avenida Paulista havia algum tempo. O que eram quinze minutos passou a três horas, cinco, seis. Desocupara-se com o preço do aluguel, a conta de luz, a falta de convites, a falta de emprego, o que os outros vão pensar, a sobrinha doente, o futuro, o almoço de amanhã, o desconhecido, a demora do elevador, o ônibus que tomou errado, a incerteza, o futuro, o metrô lotado, a saudade.

Passou por muitos lugares. Conheceu uma cidade de ruas arborizadas, pequenas vilas, jardins floridos, casas com ares de interior, escondidas atrás de uma São Paulo embrutecida, de peso e pedra. Sentiu-se mais sol, mais puro, mais livre.

Os músculos do homem estavam exauridos, as pernas fatigadas, mas a cabeça leve. Ele precisava continuar a correr para afastar os problemas. Impossível parar.

Até que as câimbras alcançaram os joelhos. O ácido lático tomou-lhe de assalto e o coração quase lhe escapou pela garganta. Caiu estatelado na calçada, imóvel.

Mas o céu permanecia azul. Azul e lindo!

(por Eduardo Shor)

sábado, 3 de outubro de 2009

Céu Azul

O homem queria correr pela cidade. Quem sabe, treinar para a São Silvestre? De fato, queria correr para esquecer as preocupações. Não para fugir delas. Na linguagem moderna, desestressar. Deixar a cabeça leve. Aproveitou o dia em que o sol iluminou São Paulo. Fez-se azul no céu como, há muito, as previsões meteorológicas não azulavam. Vestiu short de pano fino, que lhe alcançava metade das coxas. Camisa. Calçou tênis confortáveis.

Não dava as passadas longas, firmes e azuis desde os tempos em que treinava nas areias de Copacabana, na adolescência. Naquela época, corria para obter o melhor tempo e aquecer o sonho de se tornar atleta. O tempo passou, o sonho esfriou.

Alongou-se. Sentiu o estalar das articulações como o quebrar de uma vareta de bambu. Desenferrujava-se. Deu dez pulos no mesmo lugar, tentando alcançar o abdômen com os joelhos. A barriga dificultou. Já suava, quando começou a correr pelas estreitas calçadas da Marginal Pinheiros, na altura da estação de Jurubatuba.

O sol ganhava cada vez mais brilho. O céu de São Paulo, sem nuvens, parecia que tinha espantado também a poluição. O homem pretendia correr durante quinze minutos, para recuperar o ritmo do exercício aos poucos. No entanto, os problemas foram se afastando de tal maneira do pensamento que ele não quis mais parar de correr. De minuto a minuto, sua cabeça foi ficando igual ao céu. Espaçosa, azul e sem nuvens (continua amanhã).

(por Eduardo Shor)

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

De palavra em palavra...

O Nóis em Sampa ganhou destaque no blog De palavra em palavra... do jornalista Ademir Ribeiro (clique na imagem, para ampliar), que exerce a função de repórter em São José dos Campos, com participações especiais em telejornais da Rede Globo. Em 2003, saiu do Rio de Janeiro para trabalhar em Taubaté, no interior de São Paulo. Em 2006, mudou-se para São José dos Campos. Aos 28 anos, já foi apresentador, participou de programas da TV Vanguarda e atuou durante dois meses como repórter da GloboNews, em São Paulo.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

À nossa liberdade (continuação)

As palavras são mais poderosas do que os próprios indivíduos que as escrevem ou pronunciam. Pesam. São capazes de derrubar governos ou transformar reputações em cinzas. Por isso, às vezes há pessoas que não sabem o que fazer com elas. Andam sorrindo por aí, escondendo palavra onde conseguem. Na bolsa, na gaveta, no cofre, no canto da boca, na consciência.

As palavras escondidas são as piores. Elas são a náusea. Circulam pelo corpo de muitos que as escondem qual substância contaminada. Ao serem reveladas, degradam e fazem doer quem as lê ou escuta. Ressuscitam e tornam a matar. Ressuscitam e tornam a matar.

No entanto, são necessárias. Mais do que olhos ou ouvidos, para descobrir as palavras é preciso coragem e força. Há situações em que as palavras se escondem sozinhas, sem interferência humana. “O que eu ia dizer mesmo?”, o sujeito pergunta. Ou admite “eu sei o que estou sentindo, mas não consigo traduzir em palavras”.

Seja qual for o motivo, por intenção ou não, faltar o verbo é como ter as mãos dormentes. Mas não desista. Pare um tempo, se necessário. Não há receita. Arrume um modo de buscá-las.
As palavras que a gente fala ou escreve não são feitas de gramática, latim, acento circunflexo, definições de dicionário. Elas são feitas de nós mesmos. Material humano. Essência. Por isso é que, quando as usamos com sinceridade, honramos os nossos valores. E, mais do que estar sendo verdadeiros com os outros, estamos sendo sinceros conosco. Usar as palavras erradas é desrespeitar a si próprio, suas vontades, desejos e instintos.

É preciso libertar as palavras de onde quer que elas estejam. Hoje, escrevo para São Paulo não me bater tão pesado. Escrevo para aliviar a alma.

(por Eduardo Shor)

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

À nossa liberdade

Escreve-se por diversos motivos. Lembrar uma ideia mais adiante é uma boa razão para anotá-la no caderno. Há pessoas que dormem com bloco e caneta sobre a mesa de cabeceira, a fim de registrar os sonhos que tiveram durante a noite. Quando acordam pela manhã, não existe maior perigo de esquecê-los.

Deixar recado serve para informar outra pessoa que uma terceira fez contato. Elaborar lista, para rememorar ordem das tarefas. Há pichações no muro, com objetivo de demonstrar revolta. Discursos célebres expressam lições históricas. Os jornalistas escrevem para trazer a cidade até a porta da nossa casa.

Tudo o que a gente vê acaba transformando em palavra. Hoje, vivo sozinho em São Paulo. É tanta coisa nova quanto vocábulo. E o dia inteiro combinando palavra umas com as outras, para conseguir traduzir o que vejo e sinto. Milhares de palavras, rostos, esquinas, automóveis, lojas e imagens passando pela cabeça.

Fiz da palavra ofício e constituição do meu ser. Pois quando elas borbulham, eu borbulho. Quando elas aquecem, eu esquento. Quando elas ferem, eu sangro. Quando elas são vírus, adoeço. (continua amanhã)

(por Eduardo Shor)

sábado, 26 de setembro de 2009

Supermercado

Deixei o Rio de Janeiro há quase dois meses, mas moro, hoje, em frente ao Pão de Açúcar. O supermercado, não a montanha. No mês passado, uma promoção sorteou um fim de semana no Copacabana Palace, entre os clientes, com show do Gilberto Gil no Morro da Urca. Não sei se o contrário proporcionaria a mesma motivação turística. Sorteio de uma viagem a São Paulo, para os consumidores cariocas.

O supermercado é a caça dos tempos modernos. Poupa o trabalho de você encontrar uma minhoca, ferir seu dedo urbano no anzol, lançar a isca às águas e esperar pelo que, finalmente, aparecer. Pode ser peixe, lata de alumínio ou sacola plástica descartável, encontrada em qualquer supermercado.

O caçador não precisa carregar sua carabina ou portar facão. É o cartão de débito (ou crédito?) que abate o gado e as aves. Fazer compras é se descuidar da tarefa de acordar nas primeiras horas do dia para tirar leite da vaca, colher milho, trabalhar a terra, construir um cercado, semear feijão, apanhar flores, pastorear.

Será que fazer tudo isso seria possível, além de esperar o engarrafamento, cuidar dos filhos, verificar os e-mails no escritório, frequentar as aulas da academia, inscrever-se no mestrado, enfrentar a fila do banco, seguir a dieta do nutricionista, pagar o psicanalista, as parcelas do apartamento, conferir o happy hour na sexta, comprar o presente de aniversário do vizinho, dedicar-se a um hobby, procurar um supermercado mais barato que o Pão de Açúcar?

A gente moderna tem muitas necessidades e sonhos. O supermercado resgata a nossa índole primata. A que vem antes de qualquer coisa. Ela permanece latente há milênios, irracional e incontrolável no coração e no estômago. É no supermercado a moradia organizada do que pode saciar uma parte do instinto de sobrevivência humana, nas pequenas e grandes cidades.

(por Eduardo Shor)

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Relatos

Notícias d'além mar, nas palavras do publicitário Rafael Pitanguy, que atua há um ano em Lisboa, Portugal, como redator. Ele tem 29 anos, é carioca, formou-se na PUC-Rio, viveu em São Paulo durante pouco mais de 12 meses e enviou o texto a seguir.

Relato 1 – São Paulo é feio. Assim como o ser humano. São Paulo é ambicioso, solitário, miserável, cinza no céu e no olhar. São Paulo grita, dá esporro. Aqui se leva a saudade no bolso e o calo nas mãos. “Um dia eu volto pro sertão”. “Um dia eu compro um carro”. “Um dia eu levo minha família pra conhecer a praia” “Um dia eu arrumo um dia pra ficar com a minha família”. E assim a cidade cresce, cresce, cresce. Para cima do céu, tentando alcançar o nome e para os lados afrouxando cintos e fronteiras. São Paulo consome. A tudo e a si mesmo. E as pessoas andam em carros caríssimos que fazem tudo: menos andar. E as pessoas usam os melhores relógios. Mas não encontram tempo. E tem que ter estômago para engolir tanto chope e principalmente, tanto sotaque. Paulistas falam como bobos. Mas escondem um risinho que diz: “ bobo é quem me ouve”. E eu não quero saber onde fica a mehor esfirra. Na paulista? Na Faria Lima? Na Vila Madalena? Não, eu não gosto de esfirrra. Sou muito mais água de côco. São Paulo não tem nada de santo.

Relato 2 – Como é grande essa cidade. Lugar de tudo e de todos. Se alguém começar uma piada dizendo “era um alemão, um japonês, um turco, um português e um brasileiro”, pode ter certeza de que a locação é São Paulo. Em 15 minutos estou numa rua com placas em japonês. Em 2, comprando uma esfirra onde o dono da loja só aprendeu a simpatia dos brasileiros. O idioma, está longe. E são mesmo boas as esfirras. Assim como são bons os restaurantes, as exposições, os shows, os bares. Difícil dizer se os melhores programas estão na Paulista, na Faria Lima, na Vila Madalena. Aqui as pessoas vieram para se realizar, vencer, construir, brigar. E de sonho em sonho fizeram uma das maiores cidades do mundo.

Qualquer relato depende de como você vê. Graças a Deus, temos todos 2 olhos.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Intervalo

Depois de um dia escravizado, atado nas correntes das demandas de meus freelas e da minha vida, enfim, um momento para a improdutividade. TV desligada, cortinas fechadas, sozinho em casa. O silêncio da pausa. São Paulo acontece lá fora. No sofá eu me entrego ao nada, a não-existência, ao mundo que parou e se esqueceu de ser mundo. Ao mantra e à liturgia da imobilidade.

São Paulo é Londres ou é São Paulo. Cinza e nublada é tão londrina que não seria de estranhar encontrar Paul McCartney na esquina da Juscelino com Faria Lima. Com 28 anos de Rio de Janeiro, não me recordo de avenida ou rua carioca de nome JK, homem que nos despromoveu de capital federal a simples município. Segundo plano?

E qual é o plano? A vida não tem plano. Você faz um plano, dois, três, um milhão. E pode perder meia dúzia aqui, dois milhares ali, oitocentos acolá. Chega uma hora que se dá conta de ter perdido todos os planos, ainda que fossem um milhão, e não tem ideia sobre como recuperá-los.

Tenho reparado que venho, há algum tempo, usando muito a expressão “se dá conta” nas matérias que escrevo para revistas. Se o leitor topar com um texto que contenha a expressão, é capaz de ser meu.

Talvez por não saber fazer conta com a precisão de um engenheiro, ou economista. Talvez por volta e meia dar meia volta; e me dar conta de algo que eu ainda não havia percebido. E só percebi agora. E só percebi ao escrever. E só percebi quando conversei com você, ou com ele, ou com ela. Ou no ônibus.

Eu percebi que já encontrei em São Paulo duas avenidas chamadas de Brigadeiro, mas às vezes a vida aqui não é doce. Pode ser amarga, desachocolatar o coração e granular a alma.

É por isso que, depois de um dia cansativo como hoje, vou deitar no sofá e espantar a baixa temperatura me cobrindo com as almofadas. Prazer maior do que sofá confortável é se cobrir com as almofadas, para sentir o frio quadrado, pegando nos joelhos e cotovelos. Depois das 18 horas, é momento de louvar o ócio, no ritmo do descompasso de quem pega no sono, não sonha com nada e, ainda que por um tempo breve, esquece a vida.

(por Eduardo Shor)