terça-feira, 29 de setembro de 2009

À nossa liberdade (continuação)

As palavras são mais poderosas do que os próprios indivíduos que as escrevem ou pronunciam. Pesam. São capazes de derrubar governos ou transformar reputações em cinzas. Por isso, às vezes há pessoas que não sabem o que fazer com elas. Andam sorrindo por aí, escondendo palavra onde conseguem. Na bolsa, na gaveta, no cofre, no canto da boca, na consciência.

As palavras escondidas são as piores. Elas são a náusea. Circulam pelo corpo de muitos que as escondem qual substância contaminada. Ao serem reveladas, degradam e fazem doer quem as lê ou escuta. Ressuscitam e tornam a matar. Ressuscitam e tornam a matar.

No entanto, são necessárias. Mais do que olhos ou ouvidos, para descobrir as palavras é preciso coragem e força. Há situações em que as palavras se escondem sozinhas, sem interferência humana. “O que eu ia dizer mesmo?”, o sujeito pergunta. Ou admite “eu sei o que estou sentindo, mas não consigo traduzir em palavras”.

Seja qual for o motivo, por intenção ou não, faltar o verbo é como ter as mãos dormentes. Mas não desista. Pare um tempo, se necessário. Não há receita. Arrume um modo de buscá-las.
As palavras que a gente fala ou escreve não são feitas de gramática, latim, acento circunflexo, definições de dicionário. Elas são feitas de nós mesmos. Material humano. Essência. Por isso é que, quando as usamos com sinceridade, honramos os nossos valores. E, mais do que estar sendo verdadeiros com os outros, estamos sendo sinceros conosco. Usar as palavras erradas é desrespeitar a si próprio, suas vontades, desejos e instintos.

É preciso libertar as palavras de onde quer que elas estejam. Hoje, escrevo para São Paulo não me bater tão pesado. Escrevo para aliviar a alma.

(por Eduardo Shor)

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

À nossa liberdade

Escreve-se por diversos motivos. Lembrar uma ideia mais adiante é uma boa razão para anotá-la no caderno. Há pessoas que dormem com bloco e caneta sobre a mesa de cabeceira, a fim de registrar os sonhos que tiveram durante a noite. Quando acordam pela manhã, não existe maior perigo de esquecê-los.

Deixar recado serve para informar outra pessoa que uma terceira fez contato. Elaborar lista, para rememorar ordem das tarefas. Há pichações no muro, com objetivo de demonstrar revolta. Discursos célebres expressam lições históricas. Os jornalistas escrevem para trazer a cidade até a porta da nossa casa.

Tudo o que a gente vê acaba transformando em palavra. Hoje, vivo sozinho em São Paulo. É tanta coisa nova quanto vocábulo. E o dia inteiro combinando palavra umas com as outras, para conseguir traduzir o que vejo e sinto. Milhares de palavras, rostos, esquinas, automóveis, lojas e imagens passando pela cabeça.

Fiz da palavra ofício e constituição do meu ser. Pois quando elas borbulham, eu borbulho. Quando elas aquecem, eu esquento. Quando elas ferem, eu sangro. Quando elas são vírus, adoeço. (continua amanhã)

(por Eduardo Shor)

sábado, 26 de setembro de 2009

Supermercado

Deixei o Rio de Janeiro há quase dois meses, mas moro, hoje, em frente ao Pão de Açúcar. O supermercado, não a montanha. No mês passado, uma promoção sorteou um fim de semana no Copacabana Palace, entre os clientes, com show do Gilberto Gil no Morro da Urca. Não sei se o contrário proporcionaria a mesma motivação turística. Sorteio de uma viagem a São Paulo, para os consumidores cariocas.

O supermercado é a caça dos tempos modernos. Poupa o trabalho de você encontrar uma minhoca, ferir seu dedo urbano no anzol, lançar a isca às águas e esperar pelo que, finalmente, aparecer. Pode ser peixe, lata de alumínio ou sacola plástica descartável, encontrada em qualquer supermercado.

O caçador não precisa carregar sua carabina ou portar facão. É o cartão de débito (ou crédito?) que abate o gado e as aves. Fazer compras é se descuidar da tarefa de acordar nas primeiras horas do dia para tirar leite da vaca, colher milho, trabalhar a terra, construir um cercado, semear feijão, apanhar flores, pastorear.

Será que fazer tudo isso seria possível, além de esperar o engarrafamento, cuidar dos filhos, verificar os e-mails no escritório, frequentar as aulas da academia, inscrever-se no mestrado, enfrentar a fila do banco, seguir a dieta do nutricionista, pagar o psicanalista, as parcelas do apartamento, conferir o happy hour na sexta, comprar o presente de aniversário do vizinho, dedicar-se a um hobby, procurar um supermercado mais barato que o Pão de Açúcar?

A gente moderna tem muitas necessidades e sonhos. O supermercado resgata a nossa índole primata. A que vem antes de qualquer coisa. Ela permanece latente há milênios, irracional e incontrolável no coração e no estômago. É no supermercado a moradia organizada do que pode saciar uma parte do instinto de sobrevivência humana, nas pequenas e grandes cidades.

(por Eduardo Shor)

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Relatos

Notícias d'além mar, nas palavras do publicitário Rafael Pitanguy, que atua há um ano em Lisboa, Portugal, como redator. Ele tem 29 anos, é carioca, formou-se na PUC-Rio, viveu em São Paulo durante pouco mais de 12 meses e enviou o texto a seguir.

Relato 1 – São Paulo é feio. Assim como o ser humano. São Paulo é ambicioso, solitário, miserável, cinza no céu e no olhar. São Paulo grita, dá esporro. Aqui se leva a saudade no bolso e o calo nas mãos. “Um dia eu volto pro sertão”. “Um dia eu compro um carro”. “Um dia eu levo minha família pra conhecer a praia” “Um dia eu arrumo um dia pra ficar com a minha família”. E assim a cidade cresce, cresce, cresce. Para cima do céu, tentando alcançar o nome e para os lados afrouxando cintos e fronteiras. São Paulo consome. A tudo e a si mesmo. E as pessoas andam em carros caríssimos que fazem tudo: menos andar. E as pessoas usam os melhores relógios. Mas não encontram tempo. E tem que ter estômago para engolir tanto chope e principalmente, tanto sotaque. Paulistas falam como bobos. Mas escondem um risinho que diz: “ bobo é quem me ouve”. E eu não quero saber onde fica a mehor esfirra. Na paulista? Na Faria Lima? Na Vila Madalena? Não, eu não gosto de esfirrra. Sou muito mais água de côco. São Paulo não tem nada de santo.

Relato 2 – Como é grande essa cidade. Lugar de tudo e de todos. Se alguém começar uma piada dizendo “era um alemão, um japonês, um turco, um português e um brasileiro”, pode ter certeza de que a locação é São Paulo. Em 15 minutos estou numa rua com placas em japonês. Em 2, comprando uma esfirra onde o dono da loja só aprendeu a simpatia dos brasileiros. O idioma, está longe. E são mesmo boas as esfirras. Assim como são bons os restaurantes, as exposições, os shows, os bares. Difícil dizer se os melhores programas estão na Paulista, na Faria Lima, na Vila Madalena. Aqui as pessoas vieram para se realizar, vencer, construir, brigar. E de sonho em sonho fizeram uma das maiores cidades do mundo.

Qualquer relato depende de como você vê. Graças a Deus, temos todos 2 olhos.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Intervalo

Depois de um dia escravizado, atado nas correntes das demandas de meus freelas e da minha vida, enfim, um momento para a improdutividade. TV desligada, cortinas fechadas, sozinho em casa. O silêncio da pausa. São Paulo acontece lá fora. No sofá eu me entrego ao nada, a não-existência, ao mundo que parou e se esqueceu de ser mundo. Ao mantra e à liturgia da imobilidade.

São Paulo é Londres ou é São Paulo. Cinza e nublada é tão londrina que não seria de estranhar encontrar Paul McCartney na esquina da Juscelino com Faria Lima. Com 28 anos de Rio de Janeiro, não me recordo de avenida ou rua carioca de nome JK, homem que nos despromoveu de capital federal a simples município. Segundo plano?

E qual é o plano? A vida não tem plano. Você faz um plano, dois, três, um milhão. E pode perder meia dúzia aqui, dois milhares ali, oitocentos acolá. Chega uma hora que se dá conta de ter perdido todos os planos, ainda que fossem um milhão, e não tem ideia sobre como recuperá-los.

Tenho reparado que venho, há algum tempo, usando muito a expressão “se dá conta” nas matérias que escrevo para revistas. Se o leitor topar com um texto que contenha a expressão, é capaz de ser meu.

Talvez por não saber fazer conta com a precisão de um engenheiro, ou economista. Talvez por volta e meia dar meia volta; e me dar conta de algo que eu ainda não havia percebido. E só percebi agora. E só percebi ao escrever. E só percebi quando conversei com você, ou com ele, ou com ela. Ou no ônibus.

Eu percebi que já encontrei em São Paulo duas avenidas chamadas de Brigadeiro, mas às vezes a vida aqui não é doce. Pode ser amarga, desachocolatar o coração e granular a alma.

É por isso que, depois de um dia cansativo como hoje, vou deitar no sofá e espantar a baixa temperatura me cobrindo com as almofadas. Prazer maior do que sofá confortável é se cobrir com as almofadas, para sentir o frio quadrado, pegando nos joelhos e cotovelos. Depois das 18 horas, é momento de louvar o ócio, no ritmo do descompasso de quem pega no sono, não sonha com nada e, ainda que por um tempo breve, esquece a vida.

(por Eduardo Shor)